Eu sempre adorei animais.
Aliás, em criança, sofria de excesso de empatia.
Se alguém chegasse ao pé de mim com uma folha de papel e dissesse que a folha tinha um nome, eu já não conseguia estragá-la.
Por exemplo, eu tinha umas pantufas do Taz, o demónio da tasmânia, e tapava-as antes de ir dormir, para elas não terem frio. “Fogo Duarte, que querido. És mesmo uma pessoa humana.”, pensam vocês, o que até me irrita um bocado, porque a expressão “pessoa humana” dá-me um regresso de bolo alimentar na boca.
Com a idade sofri alguma dessensibilização. Não foi uma perda total, mas fui-me habituando à erosão de alguns objectos. Uma pessoa vai ficando mais dura.
Hoje em dia nem tapo as pantufas quando vou dormir.
Quis a genética que os meus filhos também padecessem de excesso de preocupação por todo o santo bicho que existe.
Há ali um excesso de sentimentos que é simultaneamente fofinho e um bocadinho desesperante.
No outro dia viram uma minhoca gigante na rua e estavam preocupados com ela porque estava sozinha. Eu disse que estava à espera da família dela.
Volta e meia antes de dormirem perguntam-me se eu sei se a família foi lá buscar a minhoca. Digo sempre que sim, mas aqui que ninguém nos ouve, não sei mesmo se foram.
O que nos traz à actual primavera, primavera, que ficará, para sempre conhecida como a primavera da Maria Café. (Para sempre é uma maneira de dizer, é até acontecer outra coisa qualquer)
Saímos de manhã para dar um passeio. A relva estava húmida da chuva da noite anterior, mas o sol estava a dar ares da sua graça. O cheiro da terra molhada estava no ar e as minhocas começavam a espreitar.
Os meus filhos estavam a brincar numa poça e os olhos deles pousaram numa pequena maria café que parecia perdida. O excesso de empatia e um golpe do destino, levou-os a adoptarem a pequena e infeliz minhoca. (Maria café é uma daquelas minhocas da terra que se enrolam e também são conhecidas por mil pés, ou só “blheck”).
E subitamente, sem saber ler, nem escrever, que é o caso da maioria das marias cafés, esta maria café tornou-se a alma da festa.
Transportada para a frente e para trás, colocada em terra molhada, colocada em terra seca, em cima de pedras, ao lado de pedras. Foi uma festa e a rainha era a grande maria café.
Chegada a hora de irmos para casa foi uma tristeza e, sem grande trabalho, os meus filhos convenceram-nos que a maria café merecia um lugar em nossa casa. Bastou um deles, com olhos marejados, dizer “Não consigo despedir-me dela” e ficou decidido.
Arranjámos uma caixinha, pusemos relva e terra molhada e lá fomos os 5. Eu, a minha mulher, os meus dois filhos e a maria café.
Quando acordaram da sesta, foram os dois a correr para ver a maria café.
Não se mexia.
“Mas será que ela está bem?” “Será que morreu?” Era uma forte possibilidade. Tendo em conta os abanões que a caixa dela levou, não me surpreendia que ela tivesse tido um pequeno piripaque.
“Se calhar está só a dormir, vamos esperar um pouco”, sugeri para evitar o drama.
Eles continuaram o dia com a caixa de um lado para o outro e como volta e meia ela mudava de posição com os solavancos, criou-se a ideia que estaria bastante vivinha.
Voltou a reinar a felicidade.
“Parabéns pai, és avô de uma maria café”
No dia seguinte (ela permanecia muito quieta) decidiram levá-la para a escola, para mostrar aos amigos. Temi pelo momento em que a professora lhes transmitisse a verdade sobre a pobre minhoca.
Quando os fui buscar à escola perguntei, “Então e a maria café? Correu tudo bem?”
“Sim” responderam, sem elaborar, mas eu quis explorar.
“Então? Mas estava viva?”
“A professora disse que não e fomos pô-la na terra novamente”
“Ok, e estão bem com isso? Ou estão tristes?”
“Bem. Quando a professora a pôs na terra, ela começou a mexer-se e enfiou-se pela terra”. Foi um milagre, pensei, foi a terceira vida do bicho. “Boa!”, disse eu.
“Sim” concordaram, “mas agora temos saudades”