Duarte Pita Negrão: "A Morte e a Morte da Maria Café"

O Duarte tem opiniões. Fundamentadas? Ahah Não. Sérias? Hmmm também não. Valem a pena? Boa pergunta!

Duarte Pita Negrão
Duarte Pita Negrão


Eu sempre adorei animais.

Aliás, em criança, sofria de excesso de empatia.

Se alguém chegasse ao pé de mim com uma folha de papel e dissesse que a folha tinha um nome, eu já não conseguia estragá-la.

Por exemplo, eu tinha umas pantufas do Taz, o demónio da tasmânia, e tapava-as antes de ir dormir, para elas não terem frio. “Fogo Duarte, que querido. És mesmo uma pessoa humana.”, pensam vocês, o que até me irrita um bocado, porque a expressão “pessoa humana” dá-me um regresso de bolo alimentar na boca.

Com a idade sofri alguma dessensibilização. Não foi uma perda total, mas fui-me habituando à erosão de alguns objectos. Uma pessoa vai ficando mais dura.

Hoje em dia nem tapo as pantufas quando vou dormir.

Quis a genética que os meus filhos também padecessem de excesso de preocupação por todo o santo bicho que existe.

Há ali um excesso de sentimentos que é simultaneamente fofinho e um bocadinho desesperante.

No outro dia viram uma minhoca gigante na rua e estavam preocupados com ela porque estava sozinha. Eu disse que estava à espera da família dela.

Volta e meia antes de dormirem perguntam-me se eu sei se a família foi lá buscar a minhoca. Digo sempre que sim, mas aqui que ninguém nos ouve, não sei mesmo se foram.

O que nos traz à actual primavera, primavera, que ficará, para sempre conhecida como a primavera da Maria Café. (Para sempre é uma maneira de dizer, é até acontecer outra coisa qualquer)

Saímos de manhã para dar um passeio. A relva estava húmida da chuva da noite anterior, mas o sol estava a dar ares da sua graça. O cheiro da terra molhada estava no ar e as minhocas começavam a espreitar.

Os meus filhos estavam a brincar numa poça e os olhos deles pousaram numa pequena maria café que parecia perdida. O excesso de empatia e um golpe do destino, levou-os a adoptarem a pequena e infeliz minhoca. (Maria café é uma daquelas minhocas da terra que se enrolam e também são conhecidas por mil pés, ou só “blheck”).

E subitamente, sem saber ler, nem escrever, que é o caso da maioria das marias cafés, esta maria café tornou-se a alma da festa.

Transportada para a frente e para trás, colocada em terra molhada, colocada em terra seca, em cima de pedras, ao lado de pedras. Foi uma festa e a rainha era a grande maria café.

Chegada a hora de irmos para casa foi uma tristeza e, sem grande trabalho, os meus filhos convenceram-nos que a maria café merecia um lugar em nossa casa. Bastou um deles, com olhos marejados, dizer “Não consigo despedir-me dela” e ficou decidido.

Arranjámos uma caixinha, pusemos relva e terra molhada e lá fomos os 5. Eu, a minha mulher, os meus dois filhos e a maria café.

Quando acordaram da sesta, foram os dois a correr para ver a maria café.

Não se mexia.

“Mas será que ela está bem?” “Será que morreu?” Era uma forte possibilidade. Tendo em conta os abanões que a caixa dela levou, não me surpreendia que ela tivesse tido um pequeno piripaque.

“Se calhar está só a dormir, vamos esperar um pouco”, sugeri para evitar o drama.

Eles continuaram o dia com a caixa de um lado para o outro e como volta e meia ela mudava de posição com os solavancos, criou-se a ideia que estaria bastante vivinha.

Voltou a reinar a felicidade.

“Parabéns pai, és avô de uma maria café”

No dia seguinte (ela permanecia muito quieta) decidiram levá-la para a escola, para mostrar aos amigos. Temi pelo momento em que a professora lhes transmitisse a verdade sobre a pobre minhoca.

Quando os fui buscar à escola perguntei, “Então e a maria café? Correu tudo bem?”

“Sim” responderam, sem elaborar, mas eu quis explorar.

“Então? Mas estava viva?”

“A professora disse que não e fomos pô-la na terra novamente”

“Ok, e estão bem com isso? Ou estão tristes?”

“Bem. Quando a professora a pôs na terra, ela começou a mexer-se e enfiou-se pela terra”. Foi um milagre, pensei, foi a terceira vida do bicho. “Boa!”, disse eu.

“Sim” concordaram, “mas agora temos saudades”




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